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História real de um maternar

Trilhando o caminho para a paz

 

O Chamado e a Gestação

 

Era domingo, o Fantástico apresentava uma reportagem de um quarto de criança onde, no lugar de um berço, havia um colchão no chão. Além da decoração diferente, me senti impactada por duas palavras: liberdade e autonomia. Sem entender direito o porquê, eu me conectei de imediato com a ideia e pensei: "Quando eu tiver um filho, quero que seja assim!".

Eu tinha por volta de vinte anos, era solteira, não tinha um computador; aliás, no bairro periférico onde eu morava mal chegava linha telefônica, quem dirá internet. Em 2014, aos trinta e cinco anos, acabara de me formar em Administração. Meu TCC sobre Empreendedorismo havia virado palestra na faculdade; eu estava academicamente a pleno vapor. Estava vibrando com a minha mais nova conquista: ser admitida no programa de MBA na FGV. Para quem cresceu na periferia, estudou a vida toda em escola pública e só teve oportunidade de ir para a faculdade depois de casada, esse era um grande feito.

Profissionalmente, eu estava dividida. Não queria mais trabalhar como assistente administrativa, eu almejava novos desafios. Um irmão advogado acabara de abrir seu escritório e me convidou para administrar seu negócio. A mente borbulhava, mas um chamado ainda mais forte ecoava no meu coração: a vontade de ser mãe. Como não tinha muito tempo a perder, me desafiei a realizar todos os sonhos ao mesmo tempo. Anunciei a minha gestação no dia da minha colação de grau.

Na entrevista do MBA, a coordenadora me tranquilizou dizendo que meu marido poderia me acompanhar depois que a bebê nascesse para que eu pudesse amamentá-la. Aceitei de pronto; afinal, eu só teria um bebê e logo retomaria todas as minhas atividades. Trabalhando com meu irmão, eu teria mais flexibilidade também.

Tínhamos um plano de saúde bem limitado à época. Dentre as poucas opções de obstetras, escolhi uma que era perto de nossa casa e do meu trabalho. Na primeira consulta, ela sequer me examinou. Disse que, por conta da minha idade, eu precisava de um especialista em gestação de risco. Mal deu tempo de esquentar a cadeira e ela me entregou um encaminhamento para um especialista na cidade vizinha. Saí do consultório sem acreditar que havia passado por aquilo. Era a primeira consulta, eu estava ansiosa, queria saber se corria tudo bem. Tomei fôlego, um café e segui para casa. Por sorte, consegui uma consulta com o especialista na mesma semana.

No consultório do tal especialista, ainda de pé em frente à sua mesa, ele me pergunta: "O que você faz aqui? Você tem alguma comorbidade?". Respondi secamente que não e lhe entreguei o encaminhamento. Ao ler o nome da médica no papel, ele disse rindo: "Ah, não. Ela de novo. Olha moça, essa médica sempre faz isso, eu já disse a ela que não aceitaria mais". Eu o mirava perplexa. Após um suspiro profundo, ele se levantou e reconsiderou. "Bom, você já está aqui. Deite-se na maca. Eu vou te examinar e pedir alguns exames." Eu não tinha certeza se ainda queria estar ali. Mas ele ao menos havia se preocupado em saber se estava tudo bem. Ele não era muito simpático, tinha um jeitão de Doctor House. Sim, aquele médico maluco da série.

Descobri depois que ele era o chefe dos obstetras daquele hospital, o que me levou a pensar que ele podia ser maluco, mas um bom médico. Segui com ele. Nas consultas de rotina, sempre nos tranquilizava em relação à saúde e desenvolvimento do bebê. Quando perguntamos se ele faria o parto, ele respondeu prontamente que só fazia partos, se necessário, em seu dia de plantão. Não tínhamos verba para contratar um plano de parto à parte e, de qualquer forma, aquele era o maior hospital da região. Como, segundo o especialista, tudo estava correndo bem com a minha gestação, e pelo histórico familiar a bebê nasceria escorregando como um quiabo, me restava confiar que tudo daria certo.

Morávamos em São Vicente e meu marido trabalhava em São Paulo. Saía de casa muito cedo e retornava por volta das 7 e meia da noite, se a serra estivesse tranquila. Em meio às ocupações com trabalho, estudos, casa, bichos e eventos familiares, sobrava pouco tempo para nos dedicarmos ao mais importante: a educação de um ser humano que chegaria em um mundo novo em pouco tempo. Inevitavelmente, três perguntas cercam uma gestante o tempo todo: o sexo do bebê, o enxoval e o tipo de decoração do quarto. Então, eu fui, tradicionalmente, seguindo nesse passo. O resto — pelo que todos a minha volta contavam — eu saberia resolver pelo instinto materno.

A primeira coisa que me veio à cabeça ao pensar na decoração do quarto da nossa bebê foi aquela reportagem do passado no Fantástico. Quinze anos havia se passado. Com acesso à internet, eu pesquiso por "quarto de criança com colchão no chão". Descobri que chamavam isso de "quartinho montessoriano". Agora havia umas camas bonitas, que pareciam uma casinha, mas aquela não era minha ideia. Fazia parte do quarto também espelho, barra, armário baixinho. Para mim, era esse conjunto de coisas que fazia a criança ter liberdade e autonomia, as duas palavras que me impactaram tanto.

Enquanto aguardávamos a entrega do nosso apartamento novo, vivíamos em uma casa alugada, muito antiga, cheia de umidade e toda a cadeia de insetos. Logo percebemos que alguns elementos da decoração não eram compatíveis com o nosso ambiente, pois a parede esfarelava toda vez que a gente tentava colocar um prego. Eu receava ainda mais os insetos. Um amigo nos ofereceu berço, cômoda e uma cadeira de amamentação. Eram móveis lindos, estilo provençal e, convencida de que eu precisava pensar primeiro na segurança e na saúde da nossa bebê, abandonei a ideia do tal "quarto montessoriano" naquele momento.

Passei a gestação inteira mergulhada em pilhas de processos, apostilas e uma calculadora HP. Achei incrível quando cheguei para fazer a última prova do semestre e haviam deixado uma garrafa de água e uma cadeira extra para eu esticar as pernas se precisasse, e era a única que tinha permissão para sair da sala se precisasse ir ao banheiro. Eu estava com pouco mais de trinta e quatro semanas de gestação, rosa e inchada como uma leitoa. Me despedi dos colegas com um "até logo, nos vemos depois das férias!".

 

​Essa é o primeiro capítulo da minha história. Clique no link para ver a versão completa.

©2023 por Caminhar Montessori

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