Desvios psíquicos e normalização
- Caminhar Montessori

- 28 de ago.
- 42 min de leitura
Introdução
Com formação em medicina e especialização em psiquiatria e antropologia, Maria Montessori compreendia bem a fisiologia e a neurologia humana. Estudou e aplicou com afinco as literaturas dos médicos-educadores Jean Marc Gaspard Itard e Édouard éguin enquanto trabalhava com as crianças atípicas e depois adaptou muitos desses materiais para as crianças típicas. Estes estudos serviram de base para compreensão dos processos cognitivos das crianças.
Sem a ambição de desenvolver um sistema pedagógico e sem um plano de ensino definido, quando redirecionou sua carreira para a área da educação, Montessori pensava em como manter ocupadas as sessenta crianças “chorosas e assustadas” que foram confiadas a ela e sua inexperiente assistente na primeira Casa dei Bambini.
Sua fundamentação científica a impulsionou a observar as crianças como forma de compreender quais eram suas necessidades e preferências. Disponibilizou, inicialmente, brinquedos, jogos e materiais utilizados com as crianças atípicas com algumas adaptações. Aos poucos, Montessori e sua assistente confeccionavam materiais que correspondessem às habilidades que as crianças precisavam adquirir ou refinar. Atenta às respostas das crianças, retirava o que era supérfluo para as crianças e lhes dava o que era necessário para que se desenvolvessem bem.
Para além dos objetos, Montessori criou uma atmosfera de liberdade com disciplina, independência e autonomia, permitindo que as crianças escolhessem trabalhar com o que consideravam útil ao seu desenvolvimento, tendo seu tempo e ritmo respeitados. Desse modo, as crianças puderam revelar quais eram as suas reais necessidades, habilidades e debilidades, e surpreendiam a todos com as respostas extremamente positivas aos estímulos. Observando, Montessori pôde “ver” que depois de um trabalho centrado com um objeto, as crianças se sentiam revigoradas, eram gentis, disciplinadas e naturalmente equilibradas.
Os resultados alcançados com aquelas crianças tidas como “chorosas e assustadas”, em San Lorenzo, deixavam Montessori emocionada e incrédula ao mesmo tempo. Nem ela mesma acreditava no que via. Montessori concluiu que os comportamentos indesejados das crianças, eram, em verdade, desvios decorrentes do tratamento hostil e do ambiente inadequado. Em legítima defesa, as crianças lutavam com os adultos opressores.
À época, a preocupação dos contratantes - que representava a preocupação da sociedade - era apenas manter as crianças ocupadas, quietas e disciplinadas. Embasada pelas suas experiências com as crianças, Maria Montessori passou a considerar que a educação moral é, antes de tudo, uma questão de saúde mental, que engloba toda a sociedade, e acreditava mais ainda na educação como uma ajuda à vida.
Para Montessori (2019), é um erro considerar o educador como “aquele que dá lições de moral” e a criança como “quem deve obedecer passivamente”. A opressão do educador não garante que no futuro a criança passiva será um exemplo de caráter e moral. A educação moral não pode ser ensinada diretamente, com discursos ou pregações, posto que, a criança é influenciada pelo entorno e pelo modo de vida dos seus semelhantes. Montessori defendia que o adulto, a criança e o ambiente se complementam, formando uma tríade.
Sabe-se que o meio ambiente, sobretudo, o ambiente escolar, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da criança. Outro conceito que Montessori acreditava ser relevante diz respeito ao desenvolvimento psíquico da criança. Montessori acreditava que a criança nasce com potencialidades que a ajudam a desenvolver-se psiquicamente. Essas potencialidades, quando encontram um ambiente favorável, desenvolvem-se de maneira natural e saudável. Esse desenvolvimento segue uma determinada ordem e são regidas por leis internas bem definidas, de acordo com as necessidades de cada indivíduo.
Não raro, a criança recém-chegada ao mundo, se depara com ambiente e adultos despreparados e muitos obstáculos, o que acaba por originar uma série de desvios, principalmente, do nascimento aos três anos de idade. No lugar de uma atmosfera de liberdade, a criança encontra um ambiente repressor.
As repressões ocorrem quando a criança sofre interferência, direta ou indireta, do ambiente físico ou não físico, que a impedem de realizar atividades úteis e de agir de acordo com as suas leis internas de crescimento e desenvolvimento.
Os desvios ocorrem quando o ser humano encontra obstáculos no seu ambiente que o impedem de agir de acordo com as leis naturais e não tem suas necessidades básicas atendidas. Os desvios, assim como as fugas e barreiras, podem nos acometer em qualquer etapa da vida, sobretudo, do nascimento aos seis anos. Os desvios adquiridos nesta etapa podem se estender ao longo da vida e resultar em defasagem na aprendizagem, no desenvolvimento da vontade, na autonomia, na independência, na coordenação dos movimentos, no intelecto e na autorregulação. Se não tratados na infância, alguns desvios podem ser irreversíveis.
Dependendo do tipo de parto, da maneira como ele é conduzido e da forma como o bebê é manuseado ao nascer, pode originar-se o primeiro trauma infantil e acarretar desvios. Medo e falta de confiança são alguns deles.
Do nascimento aos três anos, a criança está criando a sua vida psíquica, formando o seu caráter e adquirindo habilidades motoras e linguísticas, portanto, é fundamental que o ambiente físico e não físico favoreçam o desenvolvimento natural e saudável. São muitos os obstáculos que a criança pode encontrar no ambiente: a roupa, mobílias e objetos desproporcionais ao seu tamanho ou que não são pensadas para ela, falta de espaço e de oportunidade de movimento, adultos despreparados e que não conhecem as fases do desenvolvimento infantil, entre outros. Nesta fase, a criança absorve o ambiente com muita intensidade e todo o entorno impacta sua aprendizagem, positiva ou negativamente.
Sem olhar para as reais necessidades da criança, a sociedade buscava nos antigos métodos pedagógicos, um caminho para atingir o objetivo de doutriná-las. Famílias e escolas buscavam apoio de religiosos, filósofos e biólogos, no entanto, além de não chegarem a um comum acordo sobre o que buscavam de fato, usavam métodos coercitivos e ineficazes, que resultava em uma luta entre adultos e crianças.
Por meio de suas observações científicas, Maria Montessori pôde enxergar que as crianças construíam o seu caráter por meio do trabalho concentrado com as mãos e que desenvolviam as qualidades desejáveis a partir dos seus próprios esforços.
Maria Montessori destaca a importância da educação, sobretudo, do nascimento aos seis anos, onde, inconscientemente, a criança cria as raízes do seu caráter. Embora nesta etapa a criança ainda não tenha capacidade para distinguir o bem do mal, tudo o que a criança absorve do ambiente, especialmente, do nascimento aos três anos, é fixado em sua memória natural e pode impactar o desenvolvimento do seu caráter. Uma criança com caráter fraco, desviada do seu desenvolvimento natural e com baixa estima, é incapaz de assimilar o conhecimento e desenvolver todas as suas potencialidades com plenitude. Esses desvios podem ser reparados se a criança tiver oportunidade de estar em um ambiente favorável, com adultos treinados, na etapa seguinte.
Ao longo deste artigo, você descobrirá os tipos mais comuns de desvios psíquicos e a abordagem do método Montessori - revelados pelas crianças - para curar-se dos seus desvios e retomar o equilíbrio natural. Montessori chamou o processo de cura desses desvios de “normalização”.
A concentração é a chave para a "normalização". Para que a criança polarize sua atenção em um trabalho é essencial que o ambiente conte com uma atmosfera de liberdade, que oportunize a repetição do exercício, movimento e escolha livres.
Um dos desvios mais comumente observados é o instinto de posse, acompanhado da destruição. A cura desse desvio pode ser percebido quando a posse do objeto é transformado pela posse do conhecimento e pela curiosidade como forma de impulso para aprender. É a personalidade da criança alcançando um nível superior.
Quando os indivíduos falam sobre o caráter da criança, uma das inquietações mais frequentes diz respeito à obediência. O adulto quer que a criança obedeça sempre. A criança que não obedece é tida como caprichosa ou teimosa. Por ignorância, o adulto não compreende que a obediência, assim como outras habilidades, desenvolve-se em graus. A criança pequena é capaz de obedecer às suas leis internas de desenvolvimento, mas não pode obedecer o adulto quando este lhe impõe algo que não vai de encontro às suas tendências e sensibilidades. E quando ela começa a obedecer, não o faz sempre, porque está transitando de fase. Finalmente, quando é capaz de obedecer, obedece o adulto que admira voluntariamente, por vontade própria. Se a sociedade pudesse compreender isso, adultos e crianças viveriam em paz.
Energias vitais
Maria Montessori emprestou o termo “horme” do filósofo inglês, Sir Percy Nun. A “horme” pode ser comparada com o que Freud chamou de “libido”. A “horme” é uma força interna que estimula e ativa o ser humano para agir de acordo com a sua natureza. Em outras palavras, Montessori nos diz que a criança tem “energias vitais” que a impulsiona a desenvolver-se física e mentalmente. Esse é um aspecto muito importante na autoconstrução do ser humano e envolve tudo que está relacionado com a mente, com a aquisição da linguagem, o desenvolvimento do intelecto e etc.
Essas energias são subdivididas em:
Energia física: Expressado pelo corpo, nos impulsiona a uma ação, nos dá energia para continuar nos movendo, agindo.
Energia psicológica ou mental: Está relacionada com todas as coisas que não podemos ver com nossos olhos, pois está relacionado com a mente.
Normalização
É verdade que a criança de 0 a 3 anos é capaz de se concentrar, ainda que os picos de concentração sejam menores em comparação à criança de 3 a 6 anos. Contudo, nesta etapa, a criança está construindo e desenvolvendo seus órgãos motores e psíquicos. O chamado das suas leis internas de crescimento e desenvolvimento é muito forte, desse modo, não podemos normalizar uma criança nesta faixa etária. Neste período, devemos centrar nossa atenção em oferecer um ambiente ótimo nos aspectos físico e não físico para que ela desenvolva suas potencialidades de maneira plena e saudável. Em vista disso, deve ficar claro que quando se fala em processo de normalização, nos referimos às crianças a partir dos três anos de idade. Isto porque, a normalização ocorre quando a mente e o corpo trabalham em conjunto e são guiados pela vontade. Quando o movimento segue a inteligência e a vontade, fica evidente que corpo e mente estão em harmonia.
Montessori nos dizia que nosso trabalho não é corrigir os desvios da criança, mas dar-lhe oportunidade de uma nova vida, uma vida digna e melhor. Para tanto, devemos oferecer à criança a oportunidade de manter-se ativa em um ambiente adequado, livre e descontraído, sem intervenção contínua ou impositiva dos adultos.
Montessori clarifica que a solução não é isolar a criança desviada e aconselha que seja oportunizado um espaço onde as crianças pequenas possam passar algumas horas por dia em liberdade, sem isolá-las dos seus pais e do convívio social.
Se oportunizamos à criança um ambiente ótimo, onde ela possa agir livremente, com adultos humildes e pacientes, em algum momento, a criança se envolverá profundamente em uma atividade e se concentrará. O fenômeno da concentração se dá por meio de uma atividade interessante com as mãos. Quando atinge um estado de concentração profunda, todas as suas energias e forças internas se integram e surge uma nova criança, uma criança "normalizada". O fenômeno da normalização tem origem em uma atividade intensa e de verdadeira concentração. A normalização não é um estado constante, mas sim um processo dinâmico e variável.
Em "The Normalized Child" (1998), Kathleen H. Futrell* descreve as necessidades de desenvolvimento reveladas pelas crianças à Montessori.
Necessidade de movimento: Do nascimento aos três anos, a criança necessita se mover, explorar, manusear e fixar na memória natural informações relevantes para o aprendizado futuro. A criança deve ser livre para se movimentar desde o nascimento, para que aos três anos ela tenha adquirido destreza para mover-se com graciosidade e precisão. O uso de telas na fase inicial da vida é contraproducente. Entre os inúmeros malefícios, a tela hipnotiza e imobiliza a criança em uma fase em que ela precisa explorar o ambiente e coordenar seus movimentos.
Necessidade de linguagem: A criança nasce com toda a estrutura necessária para adquirir a linguagem, mas para desenvolvê-la ela precisa da interação com outros humanos. Habitualmente, a mãe põe a criança em contato com a língua materna e com a cultura do seu povo, que a criança irá incorporar como sua. Observando a boca, as expressões faciais e os sons emitidos pelos seus semelhantes, a criança, inconscientemente, se prepara para reproduzir a complexa linguagem humana. Gradualmente, sem ter assistido nenhuma aula direta, a criança absorve toda a linguagem do meio ambiente. Para Montessori, no período da aquisição da linguagem, o ideal é que as crianças possam acompanhar seus pais em todos os lugares, utilizando os meios de transporte comumente utilizados em cada civilização. Montessori defende que a criança tenha contato com uma linguagem rica e exata. Assim devemos nomear tudo o que está no entorno, das partes do corpo aos nomes científicos de plantas e animais. A criança não só é capaz de assimilar e reproduzir, como se fascina em aprender palavras complexas. Uma forma interessante é oportunizar a audição de sons isolados de um instrumento, de um sino, versando água de uma jarrinha para outra. Devemos oportunizar o silêncio para que a criança seja capaz de organizar seus pensamentos, recompor-se. Ajudamos modulando nossa voz, falando baixo e devagar. Mais tarde, a criança gostará de jogar o jogo dos sons e descobrir o som isolado de cada letra. As crianças também gostam de nos ouvir contar histórias da nossa infância ou do nosso cotidiano, se o fizermos de maneira agradável e divertida. Tudo isto ajuda a criança na aquisição da linguagem e da cultura.
Necessidade de independência: As crianças revelaram a Montessori: "Ajude-me a fazer sozinha!" Montessori fez reverberar esse pedido da criança, transformando-o em uma regra geral. Para fazer sozinha, a criança precisa de tempo e de adultos humildes e pacientes. Requer que as famílias tenham uma rotina planejada e estruturada, às vezes, isso envolve acordar mais cedo, sair antes. Quando a criança demonstra interesse em aprender algo novo, devemos isolar a dificuldade e ensinar-lhe a nova competência devagar, seguindo um passo de cada vez. Uma boa mãe, assim como uma boa educadora, deve atentar-se aos sinais da criança de que deseja e é capaz de servir-se no lanche, de vestir-se, despir-se e apoiá-la em sua jornada de independência em relação ao adulto. Se o adulto substitui as ações da criança pela sua o tempo todo, não está lhe transmitindo amor, mas sim a mensagem de que ela não é capaz de agir por si mesma. O adulto impede a criança de crescer psiquicamente e origina desvios como o complexo de inferioridade, timidez, falta de iniciativa, dificuldade em tomar decisões, retração mediante a dificuldades ou críticas, dependência física e emocional, entre outros.
Necessidade de afeto e segurança: A criança mensura o nosso amor pela quantidade e qualidade do tempo que dedicamos a estar com eles. Não basta estar junto, é preciso estar integralmente presente. Para agir com independência e autonomia, a criança necessita de autoconfiança. Para ser autoconfiante, ela necessita se sentir amada e segura. O amor e a confiança básica no adulto e no ambiente são transmitidos especialmente pela mãe durante o período simbólico. A criança toma como rejeição todo o tempo que podíamos nos dedicar a ela e preferimos nos ocupar com atividades supérfluas.
Necessidade de ordem: Montessori nos dizia que a criança alcançava a ordem interna por meio da ordem externa, em outras palavras, para ter ordem na mente é necessário ter ordem no ambiente. A ordem interna é fundamental para a expansão intelectual, bem como, para apoiar a adaptação da criança recém-chegada ao mundo. Essa ordem envolve preparar um ambiente doméstico limpo, ordenado e com uma rotina estruturada. Também envolve um ambiente fisicamente estável, ou seja, que cada coisa tenha o seu lugar e sem mudar constantemente de lugar. Os adultos também devem ser emocionalmente estáveis e coerentes. Quando tiver habilidade para transportar objetos, a criança pode fazer parte dessa organização. Os materiais devem estar organizados na estante de maneira que a criança consiga retirar, transportar e devolvê-los para o mesmo lugar. Pode-se ter uma estante, mesa ou cavalete onde a criança possa trabalhar com atividades de arte. Uma arara ou armário baixo podem conter duas ou três peças de roupas para que a criança possa escolher e vestir-se sozinha ou com um pouco de ajuda. Se a mobília e demais objetos forem proporcionais ao tamanho da criança, ela não só aprenderá a organizar as suas coisas, como se sentirá feliz e pertencente.
Necessidade de disciplina: Se a criança se sente amada, segura, respeitada e é livre para seguir as suas leis naturais de crescimento e desenvolvimento, ela desenvolverá, natural e progressivamente, a vontade de obedecer. A criança não obedecerá sempre, pois o desenvolvimento da vontade e da obediência é um processo longo e ela ainda está aprendendo, mas se esforçará para atender os pedidos do adulto que ela ama e admira. Em contrapartida, se vive em uma atmosfera de repressão, onde constantemente tem de renunciar aos seus impulsos vitais, a criança não poderá obedecer. Em legítima defesa, a criança esgotará suas energias lutando com o adulto que tenta impedi-la de seguir seu plano interno de desenvolvimento. A criança quer obedecer o adulto que ama, mas não pode porque as suas leis internas falam mais alto. Deste conflito surgem as crises de desespero. Ao falar sobre disciplina, precisamos falar também sobre limites. Para a criança pequena devemos colocar poucos limites, em geral, os limites são: não fazer mal para si mesma, para o outro e para o ambiente. Para tanto, não se faz necessário usar prêmios, ameaças ou castigos. Em vez disso, os adultos devem ser coerentes e consistentes com estes limites. Comportamentos violentos e destrutivos devem ser interrompidos com firmeza e gentileza.
Passado quase meio século de trabalho com as crianças, em Mente Absorvente, Maria Montessori (2021) ressaltou que “a normalização é o resultado mais importante do nosso trabalho”. O termo “normalização” tem origem na antropologia, e de maneira sucinta, significa que o indivíduo pode tornar-se membro contribuinte da sociedade. Montessori adotou esse termo para que as pessoas compreendessem que as características desenvolvidas nesse processo eram comuns a todas as crianças, não eram qualidades especiais que apenas algumas crianças poderiam desenvolver. A normalização, nada mais é, do que a construção do caráter e a formação da personalidade acontecendo de maneira natural e saudável.
De acordo com a Dra. Rita Zener* (2006), a normalização manifesta-se por meio da repetição de um ciclo de 3 etapas.
Preparação para uma atividade: O trabalho da criança envolve reunir o material necessário para a realização da atividade. É a criança quem deve apanhar e transportar o material até a área de trabalho, que pode ser uma mesa ou um tapete no chão.
Trabalho concentrado com as mãos: A atividade deve levar a criança a um estado de concentração profunda. A polarização da atenção é o que educadores e pais devem buscar ao observar a criança e reconhecer como a peça fundamental para a educação da criança.
Repouso: o repouso caracteriza-se por uma sensação de satisfação e bem-estar. A criança organiza e guarda o material e pode se relacionar com amigos de maneira gentil. Neste ponto, acontece alguma formação ou integração interior do indivíduo. A criança está alegre, fresca, seus olhos brilham, exibe uma aura de paz interior, de satisfação consigo mesma e com o mundo.
Isto é o que consideramos um ciclo normal de trabalho de uma criança em uma sala montessoriana. Quando a criança trabalha com as mãos, fixa sua atenção em um objeto e concentra-se profundamente, pode fazer uso das suas energias vitais - a horme - e seguir seu plano interno de desenvolvimento. A criança renasce e resgata as características comuns da raça humana, as características de uma criança normalizada, naturalmente equilibrada, sem perder a sua individualidade, sua personalidade.
De acordo com Zener (2006), as características que evidenciam que o processo de normalização está acontecendo, são:
Amor pelo trabalho;
Amor pela ordem;
Concentração;
Autodisciplina;
Sociabilidade.
Para que possamos considerar que está se formando um indivíduo normalizado comum a toda a humanidade, todas essas características precisam ser observadas, ainda que, inicialmente, se manifestem brevemente. A seguir, veremos cada característica isoladamente.
Amor pelo trabalho: A primeira característica que pode ser observada no processo de normalização é o amor pelo trabalho. Essa característica envolve escolher o trabalho com autonomia e desenvolvê-lo com independência até o final, demonstrando serenidade e alegria. Ao observar crianças de três anos que são integradas a uma sala montessoriana, podemos ver que algumas delas encontram a sua rotina de trabalho após algumas semanas, outras ainda buscam um trabalho no qual fixar sua atenção. O educador treinado apresenta-lhes vários trabalhos, alguns prendem sua atenção, mas, grande parte não. Habitualmente, apenas depois que a criança aprendeu a realizar alguns trabalhos ordenadamente, ela se mostra capaz de escolher um trabalho espontaneamente. Quando é capaz de escolher, a criança pode optar por trabalhos que um adulto talvez pensasse ser penoso para ela, mas ela o fará com entusiasmo. O trabalho que lhe prende a atenção deve ser protegido para que nada interrompa sua concentração, nem mesmo para corrigir ou elogiar. Nos afastamos e observamos de longe, sem que a criança sequer perceba. No lugar de fragmentar sua atenção em atividades isoladas com especialistas, em uma sala montessoriana autêntica, a criança tem oportunidade de se movimentar livremente e de se envolver em diferentes trabalhos formativos, em diferentes áreas de aprendizagem, ao longo de um ciclo de trabalho de três horas na Casa da Criança. Quando escolhe uma atividade por si mesma e a realiza a partir dos seus próprios esforços, a criança está no caminho de ser independente. As famílias devem ser orientadas a fazer o mesmo em seus lares. Se a criança dobra seu pijama e guarda na gaveta, seu trabalho deve ser respeitado seja qual for o resultado. Se o adulto percebe que a criança necessita aprimorar, ele pode, pacientemente, em um outro dia, mostrar como fazer de novo.
Amor pela ordem: A ordem não é um capricho da criança, é uma tendência humana. A sensibilidade biológica para a ordem pode estar presente até o quarto ano de vida da criança. Para a criança, é crucial ter um ambiente limpo e ordenado, posto que, a ordem no ambiente ajuda o indivíduo a ter ordem em sua mente. O educador é treinado para preparar e manter o ambiente ordenado, limpo, belo e funcional. Ter conjuntos de objetos que combinam as cores, por exemplo, ajuda a criança na classificação e organização do material.
Concentração: A terceira característica que fica evidente no processo de normalização é a concentração. Este nível de polarização da atenção não é atingido imediatamente; crianças que são novas na sala de aula tendem a demonstrar instabilidade na atenção. A capacidade de concentração profunda é desenvolvida ao longo do tempo, podendo ser fomentada por meio de atividades da Vida Prática. Essas atividades ajudam a direcionar a atenção da criança para tarefas concretas, permitindo-lhes períodos de trabalho mais longos. A concentração é a chave para a normalização, por isso, falaremos do fenômeno da concentração de maneira abrangente mais adiante.
Autodisciplina: A quarta característica diz respeito à autodisciplina. Esta característica é fruto de um longo processo de crescimento interior e pode exigir meses de preparação. Se escola e família divergem e a família tende a ser permissiva ou rígida demais, será difícil para a escola equalizar a balança e converter a criança. Para que a autodisciplina se manifeste, é necessário que família e escola estejam alinhados e a criança receba as mesmas orientações em ambos os ambientes. Uma criança considerada normalizada é aquela que, por volta dos quatro anos e meio ou cinco, alcançou o terceiro nível de obediência, em que obedece o adulto com entusiasmo e por vontade própria.
Sociabilidade: É a quinta característica a se manifestar durante o processo de normalização. Essa qualidade se revela pela paciência em esperar por um material que deseja e está sendo utilizado, ao respeito pelo espaço e pelo trabalho do outro, pela relação harmoniosa e pacífica entre as crianças do grupo. A criança normalizada é capaz de esperar pelo material que deseja, pois compreende que esta é uma regra do grupo e da sala. Além disso, em uma sala montessoriana, a criança tem a oportunidade de ajudar-se mutuamente. O agrupamento misto possibilita que uma criança mais velha ajude e ensine uma criança mais nova. Com isso, a criança mais velha reforça seu aprendizado, sua competência e desenvolve a habilidade de liderança. Juntas aprendem a cooperar e respeitar o outro e o ambiente. Para Zener (2006), “a sociabilidade também se refere à resposta humana de recorrer a outras pessoas após terminar um trabalho. Se o trabalho for bom, as interações sociais serão coloridas pela satisfação emocional do trabalho”.
Em The Normalized Child (1998), Kathleen Futrell acrescenta outras características que podem ser observadas durante o processo de normalização.
Gosto pelo silêncio e pelo trabalho isolado (antes dos seis anos): Em uma sala montessoriana, as crianças mais crescidas são livres para discutir ideias, comentar sobre seus trabalhos, trabalhar em pares ou em pequenos grupos e aprender umas com as outras. Essa interação é positiva e respeitada, mas um limite claro é colocado: para trabalhar junto, ambas as crianças precisam estar de acordo, e oespaço da criança que deseja trabalhar sozinha deve ser respeitado. Antes dos seis anos, a criança habitualmente gosta do “Jogo do Silêncio”. Neste jogo, a criança é desafiada a permanecer imóvel e em silêncio por alguns instantes, centrando a atenção na audição dos sons vindos do ambiente. Um momento de quietude, introspecção e paz, costumeiramente, seguido de um momento de aclamação.
Cooperação: Uma escola montessoriana autêntica combate a competição. Não há provas e notas, tampouco, quadros de incentivos com estrelinhas, que classificam as crianças como mais inteligentes ou comportadas em comparação às outras. Acreditamos que a competição é nociva tanto para as crianças que recebem as recompensas quanto para as que nunca são recompensadas. A criança que recebe uma recompensa por ser considerada mais inteligente ou comportada acredita ser superior às outras, se enchendo de um tipo de orgulho que beira a arrogância. A criança que não atinge o patamar imposto pelo adulto e não é recompensada, se sente incapaz e fracassada. Em ambas, a alegria da descoberta e a satisfação íntima em adquirir um conhecimento é substituída pelo peso de conseguir a melhor nota ou prêmio. No lugar da competição, a educação montessoriana fomenta a ajuda mútua e a cooperação. O agrupamento misto, uma das características mais marcantes do método, oportuniza que as crianças cooperem umas com as outras. A criança mais nova é acolhida e aprende com a criança mais velha que, por sua vez, reforça seu aprendizado e desenvolve a liderança. Se estabelece uma relação de admiração, amizade, confiança, respeito e coletividade.
Independência e autonomia: Quando é capaz de escolher seus trabalhos espontaneamente, as crianças sabiamente optam por trabalhos superiores. Possivelmente, trabalhos mais desafiadores do que seria ofertado pelo adulto à ela. O educador montessoriano deve preservar o desenvolvimento da iniciativa e da independência da criança e intervir apenas se a criança estiver rompendo um limite claro, como colocar a si, o outro ou o ambiente em perigo. Um ambiente Montessori promove a independência. Um exemplo disso, é todo material contar com controle de erro, o que possibilita que a criança trabalhe sozinha. Em casa, as famílias podem apoiar a proatividade e a independência da criança, proporcionando-lhe um ambiente seguro, acolhedor e tempo para desenvolver e concluir as atividades que lhe foram atribuídas. As atividades de Vida Prática, contribuirão tanto para o desenvolvimento da independência, quanto para a segurança da criança, tornando-se um membro ativo e funcional no seio da família. Há muito o que a criança pode e deseja fazer: vestir-se, despir-se, regar plantas, tirar pó, pôr a mesa, lavar louça. A autonomia pode ser incentivada por meio da escolha limitada da roupa que irá vestir, por exemplo.
Apego à realidade: Montessori acreditava que a criança precisa incorporar o ambiente em si e conhecer bem o mundo real enquanto está criando a sua vida psíquica e formando a sua personalidade. Ela não era contra os contos de fadas, mas sim da precipitação do adulto em impor a fantasia na vida da criança quando ela ainda está se adaptando ao novo mundo. É fato que as crianças adoram histórias bem contadas e se divertem com elas, mas ela se divertirá tanto ou mais com as histórias sobre a infância ou cotidiano dos pais. Montessori defendia que quando a mente da criança é madura o suficiente para abstrair, raciocinar e distinguir o mundo real do imaginário, os contos e fábulas podem ser apresentados. Na atualidade, profissionais da educação e da saúde ligados à infância, combatem veementemente o uso de telas, sobretudo, para as crianças de 0 a 6 anos. Alertam que para as crianças de 0 a 2 anos é ainda mais nocivo.
Alegria: É possível ver nos olhos da criança normalizada a alegria e o encantamento da descoberta, o frescor depois de conquistar uma nova habilidade, adquirir um novo conhecimento. Como educadores nossa missão é remover todos os obstáculos e plantar sementes de interesse para manter essa chama acesa.
Sublimação do instinto de posse: Para Montessori, alguns desvios como a inveja e a competição são resultados de uma mente restrita, de um indivíduo que tem a perspectiva limitada. Em uma sala montessoriana, as crianças aprendem a respeitar o tempo e o espaço do outro e são capazes de esperar sua vez de utilizar um material, enquanto se ocupam com outra coisa. O apego excessivo e o instinto de possuir objetos para depois abandoná-los representa um desequilíbrio nas forças internas da criança. No lar, o que se pode fazer para afastar esse instinto de posse, é limitar o número de brinquedos e outros objetos. Para tanto, o adulto deve ter autocontrole, maturidade, discernimento e, especialmente, coerência. A criança não precisa receber cinco bonecas em uma data comercial, bem como, o adulto não precisa de 5 bolsas.
Em resumo, as crianças indicaram à Montessori e sua assistente a importância de atender às suas necessidades de movimento, linguagem, independência, afeto, segurança, ordem e disciplina. Ao satisfazer tais necessidades, novas características emergem, como o amor pelo trabalho, pela ordem, concentração, autodisciplina e sociabilidade. Além disso, as crianças demonstraram a capacidade de cultivar o apreço pelo silêncio, cooperação, obediência, independência, apego à realidade, alegria e sublimação do instinto possessivo.
De acordo com Montessori, os desvios e fugas tem duas origens: a inanição mental e a falta de atividade. Isso ocorre quando a criança é privada da exploração do ambiente, do movimento livre e de estímulos interessantes que supram suas necessidades e desafiem a sua inteligência.
"Em qualquer criança, a normalização aparece invariavelmente após profunda concentração em alguma atividade... Assim que a criança encontra seu trabalho, seus defeitos desaparecem. Algo no material atrai a energia da criança que a mantém constante em um trabalho que ela repete ativamente". (A Mente Absorvente, páginas 202-203)
Desvios
Os desvios, nada mais são do que a defesa da criança, que impedida de usar a sua energia vital para se desenvolver e construir a si mesmo, a desperdiça lutando e se defendendo do adulto como pode. A maioria das crianças transita por esses desvios e tem comportamentos que variam entre forte e fraco. Nossa atenção deve se voltar, principalmente, para as crianças com desvios muito extremados para o forte, e ainda mais, para os fracos. Em suma, os desvios surgem quando corpo e mente não estão em harmonia. A criança tem dificuldade em lidar com o que está acontecendo e manifesta isso por meio de diferentes comportamentos desviados.
Os desvios podem ser de ordem:
Física: Os desvios físicos são muito fáceis de se observar, pois manifestam-se pelo movimento excessivo e desordenado. Um exemplo é quando a criança é colocada em um cercadinho, impedindo-a de desenvolver adequadamente o órgão psíquico do movimento.
Mental: Também conhecidos como "desvios psíquicos", esses desvios estão ligados à formação da personalidade infantil e podem ser mais difíceis de detectar e identificar. No entanto, com uma observação cuidadosa, podemos notar sinais de que a criança não consegue controlar seus movimentos, manter o foco, é excessivamente emotiva ou enfrenta dificuldades no período da explosão da linguagem. É importante ficar atento a esses indicadores.
Tipos de desvios psíquicos
ENERGIAS DIVIDIDAS
Quando a energia da criança está dividida, é possível identificar três processos energéticos distintos, que resultam em distintos tipos de desvios
a. Inibição do movimento: Comumente observado, esse desvio surge quando a criança encontra barreiras no desenvolvimento motor ou quando suas energias estão desalinhadas.
b. Substituição da vontade: Este desvio ocorre quando um adulto autoritário impõe suas próprias vontades e necessidades, desconsiderando as necessidades de desenvolvimento da criança. Tal atitude impede a conexão da criança com seu próprio direcionamento interno.
Aberto: Autoritarismo.
Encoberto: Está relacionado a prêmios e chantagem.
c. Abandono
Físico
Aberto: Aborto
Encoberto: Negligência nos cuidados básicos, como não dar-lhe opções de comidas saudáveis, não preparar ou mesmo não prover alimentos para a criança.
Emocional
Aberto: Indiferença perante o choro da criança.
Encoberto: Excesso de proteção ou falta de confiança na capacidade da criança de fazer escolhas e agir por si mesma.
Em palestra ministrada em um curso da AMI (Association Montessori Internationale), em 2006, a Dra. Rita Schaefer Zener, discursou sobre os "Desvios da Criança e o Papel do Adulto" nesse processo. O texto foi reproduzido com a devida autorização por Michael Olaf Company, de onde pego algumas referências para este texto. Sobre os "Processos dos Desvios", a Dra. Schaefer Zener pondera: “Esse processo não é um grande drama. É o drama da vida cotidiana”.
Corroborando com Montessori, ela revela ainda que são muitos os tipos de desvios.
Zener (2006) elucida que Maria Montessori categorizou os desvios de maneiras diversas, por vezes, sobrepondo-os entre as distintas categorias.
DESVIOS "PROMOVIDOS" PELOS ADULTOS
Via de regra, por volta dos três anos de idade, a criança manifesta desvios que, de tão comuns, são aceitos e até tidos como normais para a criança e para os adultos: o apego excessivo às pessoas e objetos, submissão, fantasia, gula e instabilidade da atenção. Essa criança, tem uma exposição exagerada a telas ou são deixadas com seus brinquedos, que por sua vez, são rapidamente abandonados.
A privação do concreto e da realidade, somada a um acúmulo de energia psíquica, se fundem e formam um mundo de ilusão, de fantasia, para onde a criança foge, a fim de alimentar o seu tédio.
A criança se torna insatisfeita, precisando estar entretida o tempo todo. Amontoa-se sobre ela uma quantidade enorme de brinquedos e não se interessa pela rotina da casa. A criança que teve seus movimentos restritos, já não tem mais a vontade da independência e da autonomia. Só lhe restou entregar-se ao adulto e agarrar-se a ele, como se ela mesma não existisse. Alguns pais compadecem e até se preenchem com esse afeto.
DESVIOS “NÃO PROMOVIDOS” PELOS ADULTOS
Também são comuns: confusão, desobediência, brigas, assim como a preguiça e a timidez. Aqui nascem as barreiras da criança, como forma de defesa.
Entenda como “promovidos”, os comportamentos que são aceitos e até incentivados pelos adultos; e como “não promovidos” os comportamentos que tentamos interromper com prêmios, castigos, ameaças, punições.
O ambiente da criança que não satisfaz sua necessidade de adaptação, faz com que as necessidades de suas energias se desviem. Maria Montessori nos diz que podemos encontrar diversos tipos de desvios.
Desvios de crianças fortes (lutam para superar obstáculos): Quando a criança deveria manejar esta energia para os seus movimentos, mas ao invés de usar a energia para se movimentar, usa para se defender e podemos encontrar dificuldade de aprendizagem. São as crianças violentas, desobedientes, grande necessidade de oposição, mentem, necessitam ter poder e superioridade sobre os colegas. Na etapa de 0 a 3 anos dificilmente veremos crianças assim. Esses desvios podem ser observados na Casa das Crianças. Os desvios mais comuns nas crianças fortes são:
Capricho
Explosões de raiva
Agressividade
Violência
Desobediência
Instinto destrutivo
Mentiras
Complexo de superioridade
Sentimento de posse
Também podem estar presentes:
Privação da concentração
Movimentos desordenados
Imaginação exacerbada
Desvios de crianças fracas (atitudes mais passivas): A ociosidade, a inércia e o choro excessivo são marcas das crianças fracas. Estão sempre buscando o auxílio do adulto para realizar suas tarefas e até mesmo para se divertir. Amedrontam-se com quase tudo e sua insegurança faz do adulto ainda mais refém. Em alguns casos, podem surgir episódios de mentira e roubo. Não raro, podem sofrer falta de apetite, pesadelos e sono agitado. Costumeiramente, sofrem de doenças psicossomáticas. Os desvios mais comuns nas crianças fracas são:
Apego excessivo
Queixas
Crises de desespero (birra)
Medos
Mentiras
Complexo de inferioridade
Dependência
Doenças psicossomáticas
Desvios mais comuns
Em "A Mente da Criança: mente absorvente" (2021), Maria Montessori descreve os tipos de desvios mais comumente percebidos nas crianças.
Afeto: Falamos aqui das crianças passivas em demasia, que tiverem sua vontade e energia enfraquecidas. Se vendo impotente diante do seu opressor, desiste e se entrega. O seu sofrimento é externado através do choro excessivo. E como duvidam sempre da sua própria capacidade, tornam-se dependentes, bonzinhos até e sempre muito apegados a alguém. É comum que essas crianças perguntem excessivamente “por quê?” e sem se ater a resposta, perguntam de novo, e de novo. O fazem não para satisfazer uma curiosidade, mas para reter a atenção do adulto. Nessa relação de interdependência, o adulto se torna prisioneiro e se torna responsável por animar a criança o tempo todo, porque ela sozinha não consegue se livrar da inércia da sua vida. E o espírito da criança se deprime cada vez mais. O adulto empurrou para trás o espírito da criança, substituiu-se a ela, atirou sobre ela todos os seus auxílios inúteis, suas sugestões, e esgotou-a; e sequer se deu conta disso, diz Montessori.
Posse: Quando a criança não encontra motivação para uma atividade concentrada em um ambiente, o que ela tem são apenas “coisas”. Porque vive uma vida vazia, ela deseja essas “coisas”, esses objetos. “Eu quero”, exige a criança forte. “Não, quem quer sou eu”, diz a outra. E assim, nasce a competição, as lutas e depois as guerras. As crianças passivas escondem, acumulam coisas sem critério, se apegam. É, portanto, um mal interior e não o objeto a causa do desejo de posse, diz Montessori.
Poder: Falamos aqui do poder como desejo de apoderar-se de algo, que está associado à posse, ao domínio. Se o adulto representa para a criança “o ser que tudo pode”, a criança desviada pensa que dominando o adulto, terá domínio sobre todas as coisas.
Capricho: Exibe um comportamento do “querer além dos limites”, o chamado Capricho. Montessori diz que a criança cria a fantasia de que o adulto pode realizar todas as suas vontades, como acontece no conto de fadas e chama esse evento de “romance do espírito infantil”. Por ser uma característica tida como comum da infância, o mesmo adulto que impede a criança de lavar suas mãos sozinha, se deixa levar pelo seu capricho. Em meio a desejos e concessões, surge a luta entre o adulto e a criança. A criança passiva domina o adulto com apelos emocionais. O adulto pondera, depois percebe que a criança está agora cheia de vícios e tenta remediar. Montessori vê o Capricho como o desvio mais difícil de se reverter.
Complexo de Inferioridade: A criança pega um copo de vidro e o adulto a interrompe, pois teme que o copo quebre. Despeja sobre a criança sua tirania, sua avareza e seu autoritarismo. Mas, se for uma visita que deixa o copo escapar das mãos, o adulto se apressa em dizer que está tudo bem. A criança, em seu íntimo, se convence de que ela deve mesmo ser um perigo e incapaz de tocar tais objetos. É menos importante. As coisas valem mais do que ela. A criança está construindo algo e o adulto diz que precisa sair já para um passeio. E de novo, a criança tem sua ação, seu tempo e seu processo interior interrompido. Mas, se o adulto precisa terminar uma tarefa, a criança precisa saber esperar. Se precisa interromper outro adulto, o faz com gentileza. A criança sente então que vale menos que os outros também. Depois desses exemplos, Montessori conclui: "nasce a inferioridade e a impotência na criança". É ainda pior quando verbalizamos a coisa: “você não pode fazer isto, não adianta tentar, você não é capaz". Criamos um ser apático, indeciso, tímido, acovardado. Um “obstáculo interior” se forma. A psicanálise chama todo esse conjunto de “complexo de inferioridade”.
Medo: O adulto receoso das ações da criança, tenta refreá-la induzindo-a ao medo de coisas fantasiosas, vagas, esperando que assim ela obedeça. As crianças mais passivas, apontadas como medrosas, tendem a revestir-se deste medo. Ainda que consideradas corajosas, as crianças mais fortes podem apresentar um “estado de medo” atípico e se mostrar pavorosas com algo comum para qualquer adulto. Um ponto comum nessas crianças, é a dependência do adulto, que por sua vez se aproveita disso. “Tudo quanto põe em contato com a realidade e permite experiências com as coisas do ambiente, ajudando a sua compreensão, afasta o estado perturbador do medo” (O Segredo da Infância). Falamos aqui do “estado de medo” impresso na criança e não do medo como instinto natural de proteção do ser humano. As crianças, de um modo geral, são corajosas e destemidas. Não tem real noção do perigo e, por isso, podem muitas vezes se colocar em risco, em atos heroicos. Montessori observou que as crianças na Casa dei Bambini contavam com uma autorregulação que as permitia trabalhar com objetos como facas e fósforos em segurança, tendo domínio dos seus atos. Isso é possível, porque as crianças desenvolvem habilidades que lhe permitiam manusear tais objetos com prudência.
Mentiras: Montessori cita as mentiras com um manto que cobre o espírito da criança e podem se apresentar de formas diversas. Uma mentira inconsciente, revelada por uma confusão mental, pode surgir depois de um trauma. Há também, a mentira fantasiosa, ditas para serem acreditadas pelos outros, como quem encena um ato teatral. A criança com um raciocínio um pouco mais desenvolvido, pode adquirir a habilidade de mentir por conveniência. Embora seja um dos fenômenos ligados à inteligência, evidenciando uma forte habilidade das funções executivas do cérebro; e a sociedade a tenha quase como indispensável, Montessori aponta a mentira como um desvio que pode ser reparado. Montessori defende que nenhum dos tipos de mentira infantil se dá por culpa da criança. Ela o faz sempre por imitação, indução, medo ou defesa do adulto.
Reflexos sobre a vida física: Tem um “bom apetite” diz o adulto sobre a criança que come em demasia, sem ter em mente que um distúrbio pode estar por trás dessa voracidade das crianças fortes. Na natureza, o animal se limita a consumir apenas o que lhe é suficiente para garantir a sobrevivência. A gula está no Homem. Na criança, a gula se desenvolve por uma desordem em seu interior. Montessori conta que nas suas escolas, os desvios alimentares eram logo resolvidos, uma vez que as crianças se encantavam tanto com o trabalho de graça e cortesia, que incluía desde colocar a mesa, até ajudar um colega menor, que comer se tornava a parte menos interessante da coisa. Um outro extremo, se dá quando a criança tem verdadeira aversão a comer e rejeita os alimentos oferecidos, levando a criança fraca a um abatimento físico, ainda que essa criança não apresenta nenhuma anormalidade digestiva do ponto de vista clínico. A recusa é uma barreira, uma defesa da criança ao adulto opressor que lhe obriga a comer a qualquer custo, sem respeitar seu corpo, seu ritmo e suas leis.
Outros tipos de desvios
Em uma sala montessoriana, é possível identificar uma variedade de crianças, cada uma com níveis distintos de energia. Essa diversidade influencia o ambiente, uma vez que este é caracterizado por se tratar de um ambiente vivo e dinâmico, em oposição a uma atmosfera estática.
Fugas psíquicas: Quando as ações da criança são substituídas pelas ações do adulto, o ambiente não é favorável, quando corpo e mente são impedidos de trabalhar em comunhão, a criança perde seu objetivo e vive desconectada de si, como um indivíduo dividido. A criança vive uma vida caótica e vazia, porque a sua mente não pode se expressar por si mesma através do movimento funcional e útil. A inteligência que deveria brotar do movimento, se dissipa e foge para a fantasia. A fantasia chega a ser admirada pelo adulto, que a confunde com imaginação criativa e inteligência. Os brinquedos são descartados tão logo deixam de ser novidade. Nesse ponto, o adulto é generoso, não se enfurece e habitualmente faz da doação de tais objetos um ritual. Sem ter onde fixar a atenção, surgem os movimentos desordenados e a impermanência, comportamentos comuns nas crianças tidas também como fortes. Quando não tratadas na infância, as fugas podem se estender pela vida adulta. São as pessoas com “temperamento imaginativo”. Desordenadas e sem foco. Amam o belo, mas são incapazes de aprender técnicas, aprofundar-se e criar algo. Vivem perdidas, sempre em busca de alguém que as salve, explica Montessori. Montessori nos diz que as fugas nos brinquedos e na fantasia são mais fáceis de serem removidas. Um ambiente que ofereça a possibilidade de desenvolver uma atividade organizada e concentrada traz à criança uma disciplina espontânea. Surgem a serenidade, a satisfação e a normalidade.
Barreiras psíquicas: Percebe-se que as crianças com imaginação exacerbada, frequentemente, apresentam dificuldades escolares. Essa diminuição na inteligência não é tida com um desvio e chega-se a pensar que há nessas crianças um tipo de inteligência diferente, e por isso, não se prende a coisas práticas como o aprendizado da linguagem e da matemática, por exemplo. O contrário disso também pode acontecer, quando desencorajamos ou reprimimos a inteligência da criança. Ao invés de fugir para fora, isola-se em seu mundo.
A barreira psíquica é um agente de defesa involuntário, sob o qual a criança não tem nenhum domínio. São tidas como pouco inteligentes, deficientes, fracas. Essas barreiras são criadas externamente às crianças pelos adultos. Um exemplo é desencorajar uma criança com frases como "você não pode fazer isso", "não corra" ou "não suba".
A barreira psíquica somada à atitude severa do adulto pode ser um caminho para as repugnâncias: por uma disciplina, pelos colegas, pela escola, pela vida. Quantos de nós sentimos verdadeira aversão e até um mal-estar simplesmente ao ouvir a palavra matemática? É quase impossível penetrar em uma mente bloqueada.
As barreiras são muito mais difíceis, mesmo nas crianças bem pequenas. É o espírito que se fecha e se põe em defesa. Seus olhos não brilham, não há fascínio pelos estudos, pelas descobertas, pela música, pelo belo. Há de se proteger de todos os seus inimigos. A criança está enfraquecida demais, sem ânimo, sem vida. É preciso reacender a chama.
Os tipos de barreiras psíquicas mais comuns, são:
Superioridade
Ansiedade social
Insegurança
Agressividade
Gula
Movimentos desordenados
Desobediência
Timidez
Possessividade: em algumas etapas a criança pode passar por essa fase
Habilidade de compartilhar (compartilhar tudo ou não compartilhar nada)
Insegurança
Dificuldade de concentração
Escapes de urina
Complexo de inferioridade
Ansiedade
Excesso de questionamentos
Medo
Mentiras
Excesso de apego
A importância da concentração
A concentração é o elemento fundamental, a parte mais importante do nosso trabalho em uma sala montessoriana, pois dela dependerá o desenvolvimento saudável do caráter, da personalidade e, posteriormente, do comportamento social da criança. Os desvios psíquicos podem ser superados quando a criança é capaz de se concentrar em uma tarefa. A concentração permite que as duas energias (corpo e mente) trabalhem juntas em harmonia.
Por isso, quando observa crianças em uma sala montessoriana, o educador treinado busca o fenômeno da concentração. Ele quer ver a criança com a atenção polarizada, fixada em um objeto, trabalhando com propósito, repetindo o exercício indefinidamente, pois sabe que, “para ser educada”, a criança precisa antes curar-se dos desvios que a impedem de desenvolver-se naturalmente.
A concentração é um processo interior, que nasce do centro da criança. Contudo, para Montessori (1946), a concentração não é um dom natural. A criança deve desenvolver essa capacidade por meio da atividade no ambiente, no período formativo, em que ela está construindo o seu caráter; e a sua natureza a impulsiona para este propósito superior. Quando a sua natureza foi desviada, seu corpo e mente foram separados, ela precisa de ajuda, de um tratamento indireto.
O educador treinado tem ciência de que nenhuma ação direta, palavras, correções, recompensas, elogios, tampouco a severidade, levarão a criança a concentrar-se. A ajuda que o educador pode dar à criança é proporcionar-lhe uma nova oportunidade, uma chance de recomeçar sua vida, de reencontrar-se consigo mesma, de reconectar-se com seus guias interiores, com as tendências e potencialidades que trouxeram a humanidade até aqui. Essa ajuda virá do ambiente, que oportuniza a criança a realização de um trabalho ordenado, constante, concentrado, escolhido espontaneamente. Uma sala montessoriana “autêntica” devolve à criança o direito de viver em liberdade, de se desenvolver naturalmente, de seguir os instintos primitivos do ser humano em satisfazer suas necessidades básicas, sempre em busca da evolução e da perfeição.
O primeiro passo a ser dado, é conseguir se conectar e criar vínculo com a criança. Enquanto a criança ainda está se adaptando ao novo ambiente, o educador é livre para agir da maneira que pensar ser mais adequado, respeitando as premissas montessorianas.
O segundo passo é situar a criança nesse ambiente que foi previamente preparado para favorecer o seu desenvolvimento integral. Isso envolve, dar orientações claras sobre as regras e limites da sala. O educador não deve temer a interrupção de ações que firam essas regras e limites, especialmente, se a criança ainda não se concentra em uma atividade espontânea. Para conquistar a “liberdade de viver”, a criança precisa ser capaz de controlar seus impulsos destrutivos e disciplinar-se. Por isso, inicialmente, a sua liberdade pode ser restringida pelo educador que, sempre de maneira positiva, respeitosa e firme, deve redirecionar a atenção da criança para uma atividade que ela gosta, apresentar-lhe algo novo e especial, como levá-la para colher folhas no jardim ou trazê-la para junto de si pelo tempo que julgar necessário. e em verdade, esse “ambiente psíquico” como Montessori costumava chamar, auxilia a criança nesse processo, gerando menos conflitos do que se vê costumeiramente em salas tradicionais. À medida que a criança treina sua atenção e vai se envolvendo com trabalhos úteis, a tendência é que a criança abandone os comportamentos desviados.
De acordo com Maria Montessori (2021), “deixar fazer o que quiser a criança que não desenvolveu sua vontade é trair o sentido de liberdade”.
"Quanto mais a capacidade de concentração é desenvolvida, mais frequentemente ocorre esse aprofundamento tranquilo no trabalho e mais claramente um novo fenômeno é mostrado: a disciplina infantil".
Depois que o educador conseguiu conquistar o coração da criança, regras e limites foram estabelecidos, é chegado o momento de iniciar a criança nos exercícios de Vida Prática. Por serem atividades que a criança normalmente está familiarizada, pois veem os adultos mais próximos fazendo, é fácil atrair a criança para esse tipo de trabalho. Além disso, os “objetos-auxiliares” que servem a Vida Prática costumam ser belos e atraentes. Seguindo técnicas específicas de apresentação, o educador fará o elo entre criança e material. Nestes exercícios, a criança encontra um trabalho real e útil, onde suas mãos tocam um objeto que lhe fixa a atenção, a sua mente se conecta de maneira que suas ações são guiadas pela sua cognição, ela se envolve inteiramente e a concentração floresce, inicialmente frágil- e por isso, deve ser protegida- mas, gradualmente, vai atingindo níveis mais profundos.
A criança que trabalha com um “objetivo inteligente” e se concentra está no caminho de recuperar a sua saúde física e psíquica, seu estado natural, a “normalização”.
De acordo com Montessori (2021), “a normalização vem da concentração em um trabalho”. Com a visão atual da neurociência, a Dra. Angelina Stoll Lillard* (2016) complementa, dizendo que a concentração decorre de uma gama maior de habilidades denominadas funções executivas.
Para tanto é necessário atentar-se a alguns critérios fundamentais, sem os quais, não é possível que a criança tenha sucesso. É preciso que o educador compreenda– e que a criança tenha clareza- de que o propósito de cada material precisa ser respeitado e que devem ser manuseados com exatidão, pois é isso que fará com que ela estabeleça a ordem mental e a coordenação dos seus movimentos, e subsequente, a concentração.
"A concentração compreende, portanto, três períodos: o período preparatório, o período do “grande trabalho”, que está relacionado a um objeto do mundo exterior, e um terceiro período que ocorre apenas no interior e que dá à criança alegria e clareza". (Montessori, 2022, p. 58-59)
De acordo com Annette Haines* todos os materiais e atividades disponíveis no ambiente de uma sala montessoriana são “ganchos” e, levando em consideração os períodos sensíveis, podem ser usados como uma estratégia de apoio à concentração. Em artigo publicado pelo NAMTA, Haines citou alguns exemplos de “ganchos” que conectam os estímulos do ambiente às necessidades da criança. Eles são apresentados de maneira fidedigna aqui (Haines, 2017, p. 1-16).
Escrita: Escrever é um “gancho” para a concentração [...] Então, nós os prendemos com a escrita e ilustração de uma história ou com uma lista de palavras fonográficas ou com a criação de um poema original. As crianças gostam de escrever e colar ou desenhar símbolos gramaticais sobre as palavras em várias frases.
Ordem: Outro “gancho” é a ordem. O ambiente preparado, com seu alto nível de ordem, é um “gancho” para a criança na idade em que mais deseja. Existem vários níveis de ordem: Ordem no nível da superfície significa “há um lugar para tudo e tudo está em seu lugar”. Mas a ordem é mais profunda do que apenas ter um quarto estável e arrumado. Os materiais exibem uma ordem profunda dentro de si, até o milímetro. E a ordem é ainda mais profunda: os objetos cabem dentro de suas caixas de uma certa maneira ordenada. O ambiente preparado é um lugar onde as crianças podem entender e confiar que ele as apoiará em sua tarefa construtiva ontem, hoje e amanhã.
Movimento: O movimento é um “gancho” para a criança que está em um período sensível para o desenvolvimento do movimento, e que mais tarde estará no período sensível para o refinamento do movimento. Para que a criança se movimente, dimensionamos cada um dos nossos ambientes preparados com muito cuidado para que haja um encaixe entre as proporções do ambiente e as proporções da criança. As crianças movem-se graciosamente e facilmente quando o ambiente lhes é proporcionado física e psicologicamente.
Água: A água é um “gancho”. Minha treinadora, Pearl Vanderwall, que tinha cinquenta anos de prática com crianças, disse: “Coloque as mãos na água”. Lave uma mesa, lave as mãos, regue as plantas da sala de aula e regue o jardim ao ar livre. Estas são algumas das primeiras atividades que atraem crianças pequenas. Essas atividades podem ser um pouco confusas, mas não as evite apenas porque pode haver um pouco de confusão.
Grande trabalho: Grande trabalho é um “gancho”. As crianças gostam de exercer o máximo esforço. Quando você lhes dá um grande trabalho, eles se sentem bem consigo mesmos. O trabalho grande constrói confiança e autoestima de uma forma que elogios e “bons trabalhos” nunca podem fazer. Do carregamento de sacos pesados às 1000 correntes e jogos de banco com grandes números do primário aos longos cálculos algébricos do elementar, o grande trabalho atrai crianças de todas as idades. O adolescente quer salvar o mundo. O jovem estudante de pós-graduação quer uma dissertação que resolva todos os nossos problemas sociais, cure doenças ou explique a macroeconomia em escala global. Quão decepcionante é quando ele descobre que é melhor a ciência reduzi-la a uma pequena questão e realmente pesquisá-la definitivamente.
Interesse: Após os quatro anos e meio ou cinco anos de idade, muitos dos períodos sensíveis desapareceram e você pode começar a seguir o interesse das crianças. O interesse pode ser um “gancho”. Talvez seja um interesse por insetos, veículos, cavalos, cachorros, borboletas ou flores [...]. Para uma criança do primeiro plano, mantenha os assuntos fundamentados na realidade e explore as coisas que a criança possa entender com seus sentidos.
Haines traz considerações importantes sobre o “interesse” da criança. De acordo com suas experiências, não se pode esperar pelo interesse da criança, pois ela acreditava que a criança não pode saber se algo lhe interessa, se sequer teve a oportunidade de conhecer. De acordo com Haines (2017), “o conhecimento cria o interesse”.
Pode ocorrer da criança não se engajar no primeiro trabalho. Então, o educador apresentará outro e outro e outro...até que a criança encontre um trabalho que lhe prenda a atenção, ela finalmente se engaja e se concentra.
E quando isso acontecer, o papel do educador será de guardião da concentração, removendo qualquer obstáculo que possa interromper o trabalho concentrado da criança. O educador agora deve abster-se de interferir, corrigir, elogiar e até olhar fixamente para a criança; assim como, deve interromper a ação de qualquer pessoa ou coisa que possa perturbar e quebrar sua concentração. Deve agir como se a criança não estivesse ali, porque ela está em um contato íntimo com ela mesma, ouvindo suas vozes interiores, se conectando com seus instintos primitivos e suas tendências naturais. Interromper esse processo faz desaparecer o interesse pelo trabalho, e de novo, a criança se afasta de si mesma e do seu desenvolvimento. Por esse motivo, a Dra. Montessori combate os intervalos para o recreio coletivo, aulas de especialistas, visitas nos horários de ciclo e insiste no ciclo de três horas de trabalho ininterruptas para a Casa da Criança (3-6 anos).
A criança que realiza um grande trabalho, com um nível profundo de concentração demonstra-se alegre, calma, revigorada e satisfeita; parece desfrutar da sensação de bem-estar e da paz interior que lhe invade. A criança concentrada passa por uma profunda transformação interior, é como um renascimento. Essa nova criança desenvolve características positivas em sua personalidade e no seu comportamento social. Ela deseja relacionar-se de maneira mais íntima com o educador e com os amigos. Mostra-se gentil e afetuosa. Agora, a criança está pronta para absorver todo o aprendizado, toda a cultura e ganhar novas habilidades.
O ciclo de três horas de trabalho para crianças de 3 a 6 anos é ainda mais importante nesse estágio. A criança se sente estimulada a realizar um trabalho que exigirá o máximo esforço, que a levará a concentração profunda, mas não é apenas isso, sua personalidade evoluiu, ela começa a dominar seus ímpetos, é capaz de autorregular suas ações e emoções, ela alcançou o que Maria Montessori chamou de fenômeno da obediência. Ela consegue voltar ao trabalho e concentrar-se mesmo depois de ser interrompida. Para que a criança se desenvolva contínua e progressivamente, é essencial garantir que a criança execute uma tarefa real e útil a cada ciclo, posto que, é do ciclo completo de uma atividade, da concentração metódica, que a criança desenvolve o equilíbrio, a elasticidade, a adaptabilidade e o poder resultante para realizar as ações superiores, como aquelas que são denominadas atos de obediência.
Esta autorregulação, que veio por meio da concentração, capacita a criança a contemplar o “exercício do silêncio”, uma vez que a criança consegue centrar sua atenção em um objeto.
Montessori compara a concentração da criança de 3-4 anos àquele poder de atenção dos gênios. Ela acreditava que, em nenhum outro período da vida, nós somos capazes de atingir um nível de concentração tão íntimo e profundo. Se não ajudarmos a criança pequena a formar um caráter forte e uma mente saudável por meio da concentração, será muito mais penoso recuperar o adulto.
Algumas escolas, preocupadas com as crianças que não conseguem encontrar um trabalho espontaneamente– e com o currículo- adotam um “Diário de Trabalho”, uma lista pronta com algumas opções de trabalho que a criança pode escolher executar durante aquele ciclo. Embora a criança ainda tenha poder de escolha, a lista de sugestões normalmente é bem restrita. A criança só pode escolher um trabalho livre depois de ter cumprido um trabalho de cada área sugerida. De acordo com a Dra. Lillard, uma pesquisa apontou que quando a criança percebe que, para avançar para um trabalho ela precisa “cumprir” outro trabalho antes, ela se sente desmotivada e pode não se engajar o suficiente para atingir uma concentração profunda, já quando as crianças podem escolher um trabalho espontaneamente, elas se engajam mais e podem alcançar níveis mais altos de concentração (Lillard, 2016).
O educador precisa observar a criança, planejar os próximos passos e saber quando a criança está pronta para novos desafios, pois o intelecto da criança sempre estará em busca de trabalhos mais complexos, que saciem a sua fome mental.
Montessori aconselha que as atividades sensoriais e culturais devem vir depois da criança ter alcançado a concentração com os exercícios práticos, então, seu leque pode ser aumentado e os “materiais de desenvolvimento” que servem às outras áreas do currículo podem ser apresentados para a criança. O desenvolvimento dos sentidos vem com a concentração, que resulta da manipulação dos objetos e da repetição. Todos os “materiais de desenvolvimento” (Sensorial, Matemática, Linguagem etc.), auxiliam a criança no desenvolvimento da concentração. Posteriormente, a concentração parte de um interesse intrínseco.
No início, o trabalho do educador é incessante e exaustivo, mas aos poucos, as crianças vão se concentrando, o som que se escuta na sala é de crianças trabalhando ou relacionando-se pacificamente.
O ambiente transformou a criança, e a criança transformou o educador, que se satisfaz em dizer que "agora as crianças trabalham como se eu não existisse" (Montessori, Pedagogia científica, 2017).
O ambiente como ajuda à normalização
Ao preparar o ambiente, o educador montessoriano deve ter em mente que os materiais devem contribuir para o desenvolvimento da criança. Não são objetos que estão ali apenas para distrair a criança e ocupar o seu tempo. Os materiais devem oportunizar trabalhos úteis, com propósitos inteligentes. O processo de autocriação que a criança opera depende disso. Para tanto, o adulto, que é parte integrante desse ambiente, deve estar preparado tecnicamente, intelectualmente, fisicamente e psicologicamente, para então, proporcionar um ambiente pensado, planejado, adequado e correto, onde a criança possa realmente se autoconstruir.
Esse ambiente deve prover oportunidades para a criança integrar suas energias, a inteligência, a vontade e o movimento. Os materiais concretos suportam o trabalho da criança e favorecem a repetição do exercício e a concentração profunda. Para além da concentração, muitos outros aspectos são trabalhados, como a sequência lógica de passos, a ordem, a liberdade, a disciplina, o respeito, à linguagem e etc. Gradual e paralelamente, graças ao ambiente preparado a criança vai interiorizando todos esses aspectos e desenvolvendo todas as suas potencialidades.
Desse modo, é o ambiente que chama a criança para o trabalho, que promove a concentração, pois foi criado conscientemente para este objetivo. Com estas atividades construtivas, a criança vai desenvolvendo o seu caráter, seus órgãos psíquicos, a coordenação dos movimentos e etc.
A importância do trabalho do adulto
O educador treinado é um pilar importante no método Montessori É ele que atua na criação de um ambiente preparado para atender as necessidades de cada criança individualmente, não de forma generalizada como ocorre no ensino tradicional.
Como é sabido, o ambiente da sala montessoriana ou do lar devem ser pensados, planejados e preparados em dois níveis:
Físico: O ambiente físico deve oferecer à criança atividades construtivas, permitindo que aflore sua personalidade verdadeira e a possibilidade de construir a si mesmo. Os materiais devem ser funcionais, belos, atraentes.
Não físico ou intangível: O ambiente não físico ou intangível é tão importante quanto o ambiente físico, uma vez que, através das nossas ações, palavras e linguagem corporal podemos, ainda que sem intenção, provocar desvios ou obstaculizar o desenvolvimento saudável da criança. Isso engloba, como nos movemos, como nos relacionamos com a criança e com as pessoas à nossa volta, como trabalhamos, se agimos com graça, cortesia e civilidade, pois tudo pode afetar o ambiente e, consequentemente, o desenvolvimento integral da criança.
Além de ser um pilar importante para o preparo do ambiente, o adulto é parte dele. Logo, além da preparação física, o educador deve garantir um ambiente seguro nos aspectos emocional e psicológico também. Para garantir um ambiente emocionalmente saudável, o adulto deve cuidar das suas emoções, abandonar o orgulho, a ira, a impaciência e compreender de lidar com as necessidades da criança, ele precisa a) conhecer a si mesmo, b) ser estudioso e aplicado em seu trabalho, c) oferecer a ajuda necessária à criança.
Devemos interromper uma atividade quando ela coloca em risco a criança, outras pessoas ou o ambiente. Às vezes, podemos observar uma ação que julgamos sem propósito ou inútil, mas é importante lembrar que, em muitos casos, a criança está se autoconstruindo por meio dessa experiência.
Ajudamos quando disponibilizamos atividades interessantes, onde a criança possa se engajar e empregar toda a sua energia psíquica de maneira produtiva.
Ajudamos quando preparamos um ambiente ótimo, que convide a criança a agir no ambiente, se centrar em uma atividade com as mãos e completar um ciclo normal de trabalho, pois é a partir disso, que a criança irá se curar dos seus desvios.
Ajudamos quando percebemos que o fenômeno da concentração está acontecendo e blindamos esse momento, protegendo o trabalho concentrado da criança, pois sabemos que este é o caminho para a criança resgatar o seu equilíbrio natural.
Notas
Kathleen H. Futrell fundou as escolas Aquinas Montessori em 1965 e a Escola Montessori Old Town em 1986. É autora de The Normalized Child, um livreto produzido a pedido das famílias de sua escola após uma palestra ministrada. Na atualidade, seu livreto ainda é amplamente divulgado na comunidade montessoriana.
Rita Schaefer Zener, Ph.D. é instrutora, conferencista, consultora e examinadora de nível primário da Association Montessori Internationale. Seu doutorado é em Desenvolvimento Humano pela Universidade de Maryland. Ela está envolvida na Educação Montessori desde 1963. Por mais de 30 anos ela dirigiu a Formação de Professores Montessori. Esses cursos foram realizados no México, Portland Oregon, Washington DC, Rochester NY e na Romênia. Dra. Zener trabalhou como Coordenadora do Distrito Escolar Público de Washington DC por nove anos para treinar e supervisionar professores Montessori nas escolas públicas de DC. Atualmente é professora adjunta do Instituto Washington Montessori do Loyola College em Maryland. Ela também foi nomeada Diretora de Treinamento. Fonte: https://www.michaelolaf.net/thailandstaff.html
Angeline Stoll Lillard, é professora de psicologia na Universidade da Virgínia e estuda o método Montessori há mais de duas décadas. Em seu livro, Montessori: a ciência por trás do gênio, a Dra. Lillard apresenta os princípios teóricos de Montessori, e como eles são implementados em uma sala de aula Montessori.
Annette Haines foi diretora de treinamento da Montessori Training Centre of St. Louis, presidente do grupo científico-pedagógico da AMI. Haines foi uma palestrante, examinadora e instrutora internacionalmente reconhecida da Association Montessori Internationale. A palestra citada foi apresentada na conferência NAMTA intitulada Finding the Hook: Montessori Strategies to Support Concentration, 6 a 9 de outubro de 2016, em Columbia, MD. Haines está se referindo a uma sala montessoriana com crianças com idade entre 3 e 6 anos. A Associação Norte-Americana de Professores Montessori – sem fins lucrativos, o NAMTA fornece às escolas, professores e pais o suporte para aprofundar os princípios e a compreensão de Montessori através de artigos, palestras, vídeos e outros.
Referência bibliográfica
Futrell, K. H. (1998). The Normalized Child. North American Montessori Teachers' Association.
Haines, A. (2017). Strategies to Support Concentration. NAMTA Journal, v.42, n.2, 45-60.
Lillard, A. S. (2017). Montessori: the science behind the genius (3rd Edition ed.). Oxford University Press.
Montessori, M. (2007). The Advanced Montessori Method: Scientific Pedagogy as Applied to the Education of Children (F. Simmonds & L. Hutchinson, Trans.). Montessori-Pierson Publishing Company.
Montessori, M. (2015). Educação para um novo mundo. Comenius.
Montessori, M. (2019). Las conferencias de Londres en 1946 (Kindle ed., Vol. 17). Montessori-Pierson Publishing Company.
Montessori, M. (2021). A mente da criança: mente absorvente. Kírion.
Montessori, M. (2022). A criança na família. Kírion.
Zener, R. S. (n.d.). The Secret of Childhood: Normalization and Deviations [Lecture given by Dr. Rita Shaefer Zener, on the AMI 3-6 course Nakhon Pathon, Thailand, April 2006 Permission given to Michael Olaf Company for reprinting] [Site]. Michael Olaf Company. Retrieved 04 02, 2024, from https://www.michaelolaf.net/lecture_secret.html

Comentários